
Durante quase dois mil anos, os Salmos foram centrais para a devoção da
igreja cristã, ensinando os fiéis a orar, em resposta ao Deus que se revela,
uma confissão e glorificação ao Deus trino, criador, redentor e restaurador.
Deste modo, “quando abraçamos Salmos, juntamo-nos a um amplo grupo de pessoas
que por quase trinta séculos tem baseado seus louvores e orações nessas
palavras antigas. Reis e camponeses, profetas e sacerdotes, apóstolos e
mártires, monges e reformadores, executivos e donas de casa, professores e
cantores populares – para todos esses e para uma multidão de outros, Salmos tem
sido vida e respiração espiritual”.1
Como Eugene
Peterson escreve, “não existe outro lugar em que se possa enxergar de forma tão
detalhada e profunda a dimensão humana da história bíblica como nos Salmos. A
pessoa em oração reagia à totalidade da presença de Deus, partindo da condição
humana, concreta e detalhada”.
Só que, por volta da primeira metade do século
dezenove, com o aparecimento dos métodos críticos de estudos bíblicos, os
salmos perderam sua centralidade na devoção cristã. Deixaram de ser a escola de
oração que dava forma à oração dos fiéis, em sua resposta ao Deus que se
revela. Passaram a ser vistos, na avaliação de Peterson, como a piedade
deteriorada de uma religião desgastada.2
1. Os Salmos e a oração
A escola que Israel e a Igreja recorreram para aprender a orar foram os
Salmos, que, junto com Isaías, foi o livro mais citado por Jesus e os apóstolos
no Novo Testamento, inclusive como apoio de doutrinas centrais da fé cristã.
Para os primeiros cristãos, a ordem era: “Enchei-vos do Espírito, falando entre
vós com salmos” (Ef 5.18-19). Logo, estes, “como seus antepassados judeus,
ouviram a palavra de Deus nesses hinos, queixas e instruções e fizeram deles o
fundamento da vida e do culto”.3
Os salmos eram declarações de
relacionamento entre o povo e seu Senhor. Pressupunham a aliança entre ambos e
as implicações de provisão, proteção e preservação dessa aliança. Seus cânticos
de adoração, confissões de pecado, protestos de inocência, queixas de
sofrimento, pedidos de livramento, garantias de ser ouvido, petições antes das
batalhas e ações de graças depois delas são, todas expressões do relacionamento
ímpar que tinham com o único Deus verdadeiro. Temor e intimidade combinavam-se
no entendimento que os israelitas tinham desse relacionamento. Eles temiam o
poder e a glória de Deus, sua majestade e soberania. Ao mesmo tempo protestavam
diante dele, discutindo suas decisões e pedindo sua intervenção. Eles o reverenciavam
como Senhor e o reconheciam como Pai.4
Na igreja primitiva e durante a reforma protestante, quando um pastor
queria ensinar sua congregação sobre a oração, pregava nos Salmos.
Nos séculos
IV e V, Atanásio de Alexandria enfatizou que cada Salmo “está composto e é
proferido pelo Espírito”, sendo o “um espelho no qual se refletem as emoções”
de nossa alma, onde “podemos captar os movimentos da nossa alma e nos faz dizer
como provenientes de nós mesmos, como palavras nossas, para que, trazendo à
memória nossas emoções passadas, reformemos a nossa vida espiritual”.5
Ambrósio de Milão, que introduziu o canto dos salmos no culto público no
Ocidente, chamou-os de “um tipo de ginásio para ser usado por todas as almas,
um estádio da virtude, onde diferentes exercícios são praticados, dentre os
quais se podem escolher os mais adequados treinamentos para se alcançar a
coroa”.6
Agostinho de Hipona, que pregou todo
o livro dos Salmos para sua congregação, chamou-os de “escola”, “espelho” e
“remédio”, “cantados no mundo inteiro”.7
Quando sua última doença o derrubou, ele pediu aos seus irmãos que
fixassem nas paredes de sua cela cópias em letras grandes dos salmos
penitenciais (Salmos 6, 32, 38, 51, 102, 130 e 143), para que ele os lesse
continuamente.
No século XVI, Martinho Lutero afirmou que o livro dos Salmos “não
coloca diante de nós somente a palavra dos santos, (…) mas também nos desvenda
o seu coração e o tesouro íntimo de suas almas”, onde aprendemos a “falar com
seriedade em meio a todos os tipos de vendavais”, e que o saltério “faz
promessa tão clara acerca da morte e ressurreição de Cristo e prefigura o seu
Reino, condição e essência de toda a cristandade – e isso de tal modo que bem
poderia ser chamado de uma ‘pequena Bíblia’”. Ele também afirmou: “É muito benéfico
ter palavras prescritas pelo Espírito Santo, que homens piedosos podem usar em
suas aflições”.8
Em seu leito de morte, ele recitava
continuamente: “Nas tuas mãos, entrego o meu espírito; tu me remiste, SENHOR,
Deus da verdade” (Sl 31.5). Por seu lado, João Calvino, que comentou todo o
livro de Salmos, escreveu:

Tenho por costume
denominar este livro – e creio não de forma incorreta – de ‘Uma anatomia de
todas as partes da alma’, pois não há sequer uma emoção da qual alguém
porventura tenha participado que não esteja aí representada como num espelho.
Ou melhor, o Espírito Santo, aqui, extirpa da vida todas as tristezas, as
dores, os temores, as dúvidas, as expectativas, as preocupações, as
perplexidades, enfim, todas as emoções perturbadas com que a mente humana se
agita. (…) A genuína e fervorosa oração provém, antes de tudo, de um real senso
de nossa necessidade, e, em seguida, da fé nas promessas de Deus. É através de
uma atenta leitura dessas composições inspiradas que os homens serão mais
eficazmente despertados para a consciência de suas enfermidades, e, ao mesmo
tempo, instruídos a buscar o antídoto para sua cura. Numa palavra, tudo quanto
nos serve de encorajamento, ao nos pormos a buscar a Deus em oração, nos é
ensinado neste livro.9
No século XVII, o puritano Lewis
Bayly, ao recomendar o cântico dos salmos pelas famílias cristãs, afirma:
“Cantem para Deus com as próprias palavras de Deus”. E o uso do saltério
deveria ter este alvo: “E faça uso frequente deles, para que as pessoas possam
memorizá-los mais facilmente”. Então, ele oferece a sugestão do uso dos seguintes
salmos para promover a piedade em família, nos momentos de oração e devoção:
De manhã, os Salmos
3, 5, 16, 22 e 144.
De noite, os Salmos 4, 127 e 141.
Implorando misericórdia
depois de ter cometido pecado, os Salmos 51 e 103.
Na doença em períodos de
dura provação, os Salmos 6, 13, 88, 90, 91, 137 e 146.
Quando o crente for
restaurado, os Salmos 30 e 32.
No dia de santo repouso semanal, os Salmos 19,
92 e 95.
Em tempos de alegria, os Salmos 80, 98, 107, 136 e 145.
Antes do
sermão, os Salmos 1, 12, 147 e a primeira e a quinta partes do Salmo 119.
Depois do sermão, qualquer Salmo relacionado com o principal argumento do
sermão.
Na Ceia do Senhor, os Salmos 22, 23, 103, 111 e 116.
Para inspirar
consolo e tranquilidade espiritual, os Salmos 15, 19, 25, 46, 67, 112 e 116.
Depois do mal praticado e da vergonha recebida, os Salmos 42, 69, 70, 140 e
145.10
Desde o princípio, a Palavra de Deus
sempre vem em primeiro lugar. Nós somos chamados a responder a Palavra de Deus,
com todo nosso ser. E a oração é nossa resposta à revelação de Deus nas
Escrituras. Sendo assim, os Salmos são a escola onde os cristãos aprendem a
orar, pois como Peterson diz, “é esta fusão de Deus nos falar (Bíblia) e nós
falarmos a ele (oração) que o Espírito Santo usa para formar a vida de Cristo
em nós”.11
Ou, como Ambrósio escreveu, “a Ele
falamos, quando oramos, a Ele ouvimos, quando lemos os divinos oráculos”.12 E Bonhoeffer completa: “Portanto, se a Bíblia também contém um livro de
orações, isso nos ensina que a Palavra de Deus não engloba apenas a palavra que
Deus dirige a nós. Inclui também a palavra que Deus quer ouvir de nós… (…) Que
graça imensurável: Deus nos diz como podemos falar e ter comunhão com Ele! E
nós podemos fazê-lo orando em nome de Jesus Cristo. Os Salmos nos foram dados
para aprendermos a orar em nome de Jesus Cristo”.13
Se insistirmos em aprender a orar
sozinhos, sem depender dos Salmos, nossas orações serão pobres, uma repetição
de frases prontas: agradecemos as refeições, arrependemo-nos de alguns pecados,
suplicamos bênçãos para nossas reuniões e até pedimos orientação. Por outro
lado, toda nossa vida deve estar envolvida na oração. Peterson exemplifica esse
fato com o livro do profeta Jonas, que gira inteiramente em torno das relações
entre Deus e o profeta.14 Essas relações se
originaram por meio do chamado profético, do qual Jonas procurou fugir. Mas
este personagem não é entregue a si mesmo. Na primeira parte da historia, Deus
deixa que o profeta chegue ao extremo de quase perder a própria vida, somente
para em seguida restaurá-lo à posição onde se encontrava antes dele tentar
evitar o chamado do Senhor.
No centro da narrativa bíblica está a
oração que Jonas proferiu após ser engolido por um grande peixe. Sua primeira
reação ao se encontrar no ventre do peixe foi fazer uma oração (cf. Jonas
2.2-9), o que não é surpreendente, pois geralmente oramos quando estamos em
situações desesperadas. Mas existe algo surpreendente na oração de Jonas. Como
Peterson destaca, sua oração não é original ou espontânea: “Jonas aprendeu a
orar na escola, e orava como aprendera. Sua escola eram os Salmos”. Como o
mesmo autor demonstra, frase após frase a oração de Jonas está repleta de
citações dos Salmos:
· “Minha angústia” de
Salmos 18.6 e 120.1.
· “Profundo” de Salmo
18.4-5.
· “As tuas ondas e as
tuas vagas passaram por cima de mim” de Salmo 42.7.
· “De diante dos teus
olhos” de Salmo 139.7.
· “Teu santo templo”
de Salmo 5.7.
· “As águas me
cercaram até à alma” de Salmo 69.2.
· “Da sepultura da
minha vida” de Salmo 30.3.
· “Dentro de mim, desfalecia
a minha alma” de Salmo 142.3.
· “No teu santo
templo” de Salmo 18.6.
· “Ao Senhor pertence
a salvação” de Salmo 3.8.
Cada palavra é derivada do livro dos
Salmos. Geralmente achamos que a oração é genuína quando é espontânea, mas a
oração de Jonas, numa condição extremamente difícil, é uma oração aprendida,
sem originalidade alguma.
Peterson prossegue: “Ter palavras
prontas para a oração não é apenas uma questão de vocabulário. Nos últimos cem
anos, teólogos deram atenção cuidadosa à forma particular que os salmos têm
(crítica da forma) e os dividiram em duas grandes categorias: lamentações e
ações de graças. As categorias correspondem às duas grandes condições em que
nós nos encontramos: angústia e bem-estar”. De acordo com as circunstâncias e
em como nos sentimos, lamentamos ou agradecemos.15“Os salmos
refletem muitas e diversas reações à vida: alegria, tristeza, gratidão e
tranquila meditação, para nomear apenas algumas. O adorador israelita tinha uma
oração pronta para todas as vicissitudes da vida. (…) Os salmos são orações
cantadas para Deus, logo, eles chegam a nós como palavras da congregação
dirigidas a Deus, em vez de a Palavra de Deus dirigida ao povo de Israel”.16
Como Peterson enfatiza, “a forma mais
comum da oração nos Salmos é o lamento”. Isso não deveria nos surpreender, já
que essa é nossa condição mais comum. “Temos muitas dificuldades, então oramos
muito em forma de lamento. Um estudioso da escola de oração dos Salmos
conheceria essa forma melhor que todas, pelo simples fato da repetição”. Jonas
se encontrava na pior situação imaginável. Seria natural que ele lamentasse.
Mas ocorre o contrário – ele profere um salmo de louvor. Por isso Peterson
escreve: “Uma lição importante surge aqui: Jonas estudou para aprender a orar,
e aprendeu bem suas lições, mas ele não era um aluno que apenas decorava. Seus
estudos não bloquearam sua criatividade. Ele era capaz de distinguir entre as
formas e decidiu orar numa forma adequada às suas circunstâncias que ele
enfrentava. As circunstâncias exigiam lamentos. Mas a oração, apesar de
influenciada pelas circunstâncias, não é determinada por elas. Jonas usou a
criatividade para orar e decidiu orar na forma de louvor”.
Por isso, não é suficiente expressar
nossos sentimentos na oração, como resposta a Deus: “Precisamos de um longo
aprendizado de oração”. Por isso, a melhor escola para a oração é o livro dos
Salmos. “Em sua oração”, Peterson continua, “Jonas demonstra ter sido um aluno
aplicado na escola dos Salmos. Sua oração se origina de sua situação, mas não
se reduz a ela. Sua oração o levou a um mundo muito maior que sua situação
imediata”. Ele orou de maneira adequada à grandeza de Deus, que o chamara, nos
oferecendo um forte contraste com a atual prática de oração. Nossa cultura nos
apresenta formas de oração que são em grande parte centradas em nós mesmos. Mas
a oração que é resposta ao Deus que se revela nas Escrituras é dominada pela
percepção de Sua grandeza.
2. A regra da oração
Como Peterson enfatiza, o modelo básico de devoção é a oração diária baseada
nos Salmos, sequencialmente, uma vez por mês.17 Mas precisamos destacar que a oração diária dos salmos não é uma ação
isolada. Ela permanece entre outros dois fundamentos: a adoração junto com a
igreja no domingo e a oração diária, que são recordações às vezes intencionais,
outras vezes espontâneas, em resposta a Deus. Esses três fundamentos formam o
ambiente de oração que estimulará a devoção. No diagrama sugerido por Peterson,
esses fundamentos aparecem assim:
A adoração na igreja firma nossa espiritualidade na Escritura e na
vida em comunidade. Os Salmos nos levam a reaprender a linguagem da oração. E a
oração recordada desdobra a oração para todos os pormenores da vida. O alvo é
tornar a oração recordada incessante por meio da adoração comunitária junto com
a oração dos salmos. Como Peterson escreve, “os Salmos, centrados entre Adoração
e Recordação, são o lugar determinado onde habitualmente revisamos a base, o
vocabulário e os ritmos da oração”. É esta dinâmica que desenvolverá nossa vida
de oração. Por isso, a regra (regula) da devoção é: “Adoração
Comunitária/Oração dos Salmos/Oração Recordada é a base de onde começamos e
para onde voltamos – sempre”.
3. Os cristãos e o uso dos Salmos
Como aprendemos no Novo Testamento, Jesus Cristo, ao mesmo tempo em que
orou os Salmos (Hb 2.12) é o principal tema dos Salmos. “O cristão encontra nos
Salmos não somente os santos, mas também a Jesus Cristo, ‘o cabeça dos santos’,
com seu sofrimento e sua ressurreição. Portanto, nos Salmos, como o Salmo 22 e
69, o próprio crucificado fala”.18 Portanto, é
justamente aqui que é estabelecida nossa confiança de que seremos atendidos na
oração: “Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós,
pedireis o que quiserdes, e vos será feito” (Jo 15.7). Pois como Bonhoeffer
escreveu: “Ao repetir as próprias palavras de Deus, começamos a orar a Ele. Não
oramos com a linguagem errada e confusa de nosso coração; mas pela palavra
clara e pura que Deus falou a nós por meio de Jesus Cristo, devemos falar com
Deus, e Ele nos ouvirá”.19 Jesus Cristo
ensinou aos seus discípulos que os Salmos proclamam seu nascimento, vida, morte
e ressurreição (Lc 24.44). Por outro lado, uma vez que o Filho é “Deus de Deus,
Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, os Salmos são dirigidos a ele,
assim como ao Pai e ao Espírito Santo (Jd 20-21). Portanto, Jesus Cristo é o
alvo da oração dos salmos. E ao orarmos em nome e por meio da mediação de Jesus
Cristo, nos unimos a ele, que vive sempre para interceder por nós (Hb 7.25).
Portanto, Jesus Cristo é a chave que interpreta os Salmos e aquele que
ora os Salmos deve buscar a Cristo como revelado no saltério. Em vez de tratar
as promessas, súplicas, confissões e lamentos de forma analítica, na leitura
dos Salmos aquele que ora participa das promessas, súplicas, confissões e
lamentos do próprio Cristo. O foco de tal oração será, assim, alcançar uma
maior comunhão com Jesus Cristo. “Lutero não sabia nada de um conhecimento da
Bíblia puramente objetivo, desinteressado ou erudito. Tal conhecimento, mesmo
se possível, seria apenas a letra morta que mata. O Espírito vivifica! Devemos,
portanto, ‘sentir’ as palavras das Escrituras ‘no coração’. A experiência é
necessária para entender a Palavra. Não é meramente para ser repetida ou
conhecida, mas para ser vivida e sentida”.20 Num sermão sobre a expressão “invoquei o Senhor” (Sl 118.5), Lutero
disse para congregação:
Invocar é o que você precisa aprender. Você
ouviu. Não fique aí apenas sentado ou virado de lado, levantando a cabeça e
balançando-a, e roendo as suas unhas preocupado e buscando uma saída, com nada
em sua mente a não ser como você se sente mal, como você está ferido, que coitado você é. Levante-se, seu tratante preguiçoso! Ajoelhe-se! Levante suas mãos e
seus olhos para o céu! Use um salmo ou o pai-nosso a fim de clamar sua angústia
ao Senhor.21
As Escrituras, dessa forma, não são apenas a perfeita revelação de Deus,
mas guia do cristão em suas lutas e vitórias – não apenas atos históricos
passados e distantes, mas eventos vivos, aqui e agora. Deste modo, há outro
fator que deve levar os cristãos a meditar e incluir os Salmos em sua oração:
O abismo que há entre o cristianismo moderno e a espiritualidade da
Bíblia pode ser visto (…) no nosso seletivo uso dos Salmos, que era o hinário
do povo de Israel e da Igreja do Novo Testamento. Os Salmos não apenas refletem
toda experiência humana (p. ex.: confusão, raiva, medo, ansiedade, depressão,
alegria incontida), mas também nos forçam a parar de fingir que tudo esteja bem
com o mundo. Os salmos de lamentação (por exemplo, os salmos 10, 13, 35 e 86)
são veementes queixas diante de Deus em relação às contradições existentes
entre suas promessas e a realidade pela qual o povo passa. Esses salmos
raramente são usados no culto cristão hoje em dia. Contudo, esses salmos são
atos de uma fé corajosa: corajosa, porque eles insistem em que temos que
enfrentar o mundo como ele é, e que temos que abandonar toda ostentação
infantil; mas também de fé, porque eles partem da convicção de que não existe
assunto proibido, quando se trata de termos uma conversa com Deus. Reter
daquela conversa com Deus qualquer coisa da experiência humana, inclusive a
escuridão de uma oração não respondida e os aspectos negativos da vida, é negar
a soberania de Deus sobre toda a vida. Assim, paradoxalmente, são aqueles que
reprimem suas dúvidas com uma série de cânticos alegres que bem podem estar
sendo incrédulos: pela recusa de crer que Deus pode cuidar de toda a raiva que
eles têm. Assim, os salmos de protesto constituem uma poderosa repreensão ao
que passa por fé e louvor na maioria dos grupos cristãos de hoje. O que é
irônico é que a vida moderna talvez nos exponha a mais confusão e dor do que
qualquer coisa do mundo do salmista; e contudo ignoramos exatamente aquelas
orações que vêm de encontro a tal senso de desorientação. Não é de admirar que
muito do ensino atual quanto à fé não seja diferente do ‘pensamento positivo’
dos gurus modernos da administração, conquanto vestido com uma roupagem
pseudobíblica. A fé bíblica, entretanto, é exatamente o contrário.22
Portanto, “os salmos continuam sendo um tesouro de auxílio espiritual
para os cristãos. (…) Seja qual for o nosso estado de espírito, seja qual for
nossa situação, as vozes antigas nos convidam a ouvi-las. Elas também já
passaram por alegria, tristeza, luto, pecado, ira, confissão, perdão e outras
experiências que tocam tão profundamente em nossas vidas. Elas nos chamam a
aprender delas enquanto o Espírito Santo usa essas palavras para nos trazer
para mais perto do Senhor”.23
4. Colocando em prática
Podemos nos beneficiar do que Dietrich Bonhoeffer escreveu sobre o uso dos
Salmos: “Em muitas igrejas, cantam-se ou leem-se Salmos a cada domingo ou até
diariamente. Essas igrejas preservaram uma riqueza imensurável, pois somente
pelo uso diário penetraremos nesse livro divino de oração. Para o leitor ocasional,
suas orações são pujantes demais em seus pensamentos e sua força, de modo que
voltamos a procurar alimento mais digerível. Quem, no entanto, começou a orar o
Saltério com seriedade e regularidade, logo dispensará as próprias orações
superficiais e piedosas dizendo: ‘Elas não têm o sabor, a força, a paixão e o
fogo que encontro no Saltério. São muito frias e rígidas’ (Lutero)”.24 Portanto, devemos incluir os Salmos em nossas orações diárias,
permitindo que a Palavra de Deus estimule e guie nossas petições. E como uma
ajuda para orar os Salmos diariamente em nossa meditação ou oração diária,
oferecemos o roteiro abaixo:25
·
Dia 1: Salmos 1 a 8
·
Dia 2: Salmos 9 a 14
·
Dia 3: Salmos 15 a 18
·
Dia 4: Salmos 19 a 23
·
Dia 5: Salmos 24 a 29
·
Dia 6: Salmos 30 a 34
·
Dia 7: Salmos 35 a 37
·
Dia 8: Salmos 38 a 43
·
Dia 9: Salmos 44 a 49
·
Dia 10: Salmos 50 a 55
·
Dia 11: Salmos 56 a 61
·
Dia 12: Salmos 62 a 67
·
Dia 13: Salmos 68 a 70
·
Dia 14: Salmos 71 a 74
·
Dia 15: Salmos 75 a 78
·
Dia 16: Salmos 79 a 85
·
Dia 17: Salmos 86 a 89
·
Dia 18: Salmos 90 a 94
·
Dia 19: Salmos 95 a 101
·
Dia 20: Salmos 102 a 104
·
Dia 21: Salmos 105 e 106
·
Dia 22: Salmos 107 a 109
·
Dia 23: Salmos 110 a 115
·
Dia 24: Salmos 116 a 119.32
·
Dia 25: Salmo 119.33 a 119.104
·
Dia 26: Salmo 119.105 a 119.176
·
Dia 27: Salmos 120 a 131
·
Dia 28: Salmos 132 a 138
·
Dia 29: Salmos 139 a 143
·
Dia 30: Salmos 144 a 150
Pode ser de ajuda citar extratos de um ensaio sobre meditações diárias
escritas por Eberhard Bethge em 1935, sob a supervisão de Bonhoeffer, para uso
no seminário de pregadores (Predigerseminar) de Finkenwalde. Este
oferece sugestões práticas que se aplicam ao uso dos Salmos em nossa oração e
meditação diária:
Nós recomendamos a meditação bíblica para moldar nossas orações e, ao
mesmo tempo, para disciplinar nossos pensamentos. Finalmente, nós preferimos a
meditação bíblica porque nos faz conscientes de nosso companheirismo com outros
[irmãos] que estão meditando no mesmo texto. A Palavra da Escritura nunca deve
parar de soar em nossos ouvidos, e [deve continuamente] trabalhar em nós ao
longo do dia, como as palavras de alguém que você ama. E assim como você não
analisa as palavras de alguém que você ama, mas aceita o que ele lhe diz,
aceite a Palavra da Escritura e medita nela em seu coração, como Maria o fez.
Isto é tudo. Isto é meditação. Não olhe para novas reflexões e conexões no
texto, como se você estivesse preparando uma pregação. Não questione ‘como
passar isto para alguém?’, mas ‘o que ele tem a dizer para mim?’ Pondere na
Palavra longamente em seu coração e deixe que ela te dirija e te possua. Não é
importante consumir o texto integral proposto para cada dia. Nós ficaremos,
frequentemente, esperando um dia inteiro para ouvir o que ele tem a dizer.
Deixe passagens incompreensíveis sossegadamente de lado, e não se apresse a ir
à filologia. (…)
Se os seus pensamentos o distraírem ore pelas pessoas e situações que
lhe preocupam. Este é o lugar certo para intercessão. Neste caso, não ore em
termos gerais, mas ore de forma objetiva por aquilo que lhe preocupa. Deixe a
Palavra da Escritura o conduzir. Pode ser de ajuda você escrever calmamente o
nome das pessoas com quem conversamos e pensamos todos os dias. A intercessão
precisa de tempo se for levada a sério. Mas cuidado ao fixar um tempo designado
para intercessão, para que esta não se torne uma fuga daquilo que é mais
importante, a busca pela salvação de sua própria alma.
Iniciamos a meditação com uma oração pelo Espírito Santo. Que ele
clareie o nosso coração e prepare a nossa mente para a meditação e de todos
aqueles que estarão meditando também. Então, nos voltamos ao texto. Ao término
da meditação nós estaremos em posição de proferir uma oração de ação de graças
com um coração satisfeito. (…)
O tempo para a meditação é de manhã, antes de começar as tarefas. Meia
hora é o mínimo de tempo necessário para a meditação. Observe que o
pré-requisito é quietude extrema e o objetivo é não ser distraído por nada, por
mais importante que seja.
Uma atividade da comunidade cristã, infelizmente praticada muito
raramente, mas bastante útil, é quando ocasionalmente duas ou mais pessoas se
dispõe a meditar juntas. Mas que não tomem parte em discussões teológicas
especulativas.26
Bethge anexou esse texto a uma carta circular enviada de Finkenwalde
para os pastores da Igreja Confessante (Bekennende Kirche), em 22 de
maio de 1936. O ensaio foi rapidamente compartilhado entre os colegas pastores
presos pelo governo nazista. Bethge contou depois em como a exigência de
Bonhoeffer de que os alunos do seminário de pregadores de Zingst deveriam
dedicar meia hora a cada manhã para meditação silenciosa de um texto bíblico
lhes causou grandes dificuldades. Eles não sabiam como usar este tempo. Alguns
iam dormir, outros preparavam sermões, outros nem sabiam o que fazer ou
reclamavam que o tempo dedicado à meditação era excessivamente longo. Estas
instruções tencionavam tornar claro aos seminaristas a importância da meditação
e a maneira pela qual esta deveria ser feita.27
Sandro Baggio,
pastor-mentor do Projeto 242, preparou um roteiro para ajudar sua comunidade a
praticar a leitura orante (lectio divina).28Sugerimos que
esse roteiro deve ser usado durante a meditação nos Salmos, na medida em que
estas orações inspiradas pelo Espírito Santo são incorporadas às orações do
povo de Deus:
Lectio divina é um método de leitura-orante da
Bíblia. É ler a Bíblia não tanto para acumular conhecimento, mas como uma forma
de diálogo com Deus. Basicamente, a lectio divina consiste em statio (preparação), lectio (leitura), meditatio (meditação), oratio(oração), contemplatio (contemplação), discretio (discernimento), comunicatio(comunicação) e actio (ação). É preciso prática para penetrar na riqueza que a lectio divina pode trazer para sua vida espiritual.
‘Medita estas coisas e nelas sê diligente’ [1Tm 4.15].
A prática da lectio divina requer que você separe um tempo para estar a sós, num local tranquilo,
sem distrações. Selecione o texto que deseja ler (de preferência, não muito
longo).
Os elementos centrais da lectio divina são:
Ler: Atentamente, com prazer e com fome, saboreando as palavras como
alimento espiritual. Leia o texto várias vezes, dando especial atenção aos
versos ou palavras que lhe chamam atenção. Escute o que o texto fala com você.
Pensar: O que esse texto significa para você? Que versos ou palavras
falam mais à sua situação hoje? Como você tem vivido em relação a ele?
Orar: Orar é responder ao chamado no profundo de seu coração para falar
com Deus. Além de suas palavras, essa resposta pode ser também escrita em um
diário espiritual, com gestos (ajoelhar-se) e cânticos.
Viver: Você pode ler, pensar e orar o dia todo, mas a menos que você
pratique a Palavra de Deus, não terá valido nada. É preciso colocar em prática
o que Deus falou com você durante esse tempo de leitura e reflexão. Sua vida
será o maior testemunho que você poderá dar.
Nos dois textos citados acima é sugerida a meditação a sós. Mas queremos
enfaticamente recomendar que o tempo de oração ao Deus Trino seja feita em
comunidade – quando dois ou mais irmãos se reúnem para juntos buscar a Cristo
em oração por meio da leitura dos Salmos. Pois não é natural que o cristão
esteja só – a igreja, o ajuntamento dos fieis, é o corpo de Cristo, o templo de
Deus, o santuário e habitação do Espírito Santo (1Co 3.16-17; 6.19; 10.16;
12.27; Ef 4.12) – e é em comunidade que o cristão irá não só aprender a orar,
mas permanecerá em oração: “Regozijai-vos sempre. Orai sem cessar” (1Ts
5.16-17). 29
Prossigamos com Bonhoffer: “Se em nossas igrejas já não oramos os
Salmos, então devemos incluí-los com mais afinco em nossas meditações matutinas
e vespertinas. Devemos ler vários Salmos diariamente e, de preferência, em
conjunto, a fim de lermos este livro diversas vezes ao ano, penetrando nele com
mais profundidade. Não deveríamos selecionar arbitrariamente alguns Salmos. Ao
fazer isto, estamos desonrando o livro de orações da Bíblia, julgando saber
melhor do que o próprio Deus o que devemos orar. Na igreja antiga não era
incomum saber ‘o Davi todo’ de cor. Nas igrejas orientais isto era condição
para o exercício eclesiástico. Jerônimo, um dos pais da igreja, conta que na
sua época ouvia-se o cântico de Salmos nas lavouras e nos quintais. O Saltério
marcava a vida da jovem cristandade. Mais importante do que isto, no entanto, é
que Jesus Cristo morreu na cruz com a palavra dos Salmos em seus lábios. Ao
esquecer-se do Saltério, a cristandade perde um tesouro inigualável. Ao
recuperá-lo, será presenteada com forças jamais imaginadas”.30 Portanto, voltemos à beleza, riqueza, profundidade e amplitude dos
Salmos como nosso guia da oração.
Conclusão
Durante sua longa trajetória, a igreja usou os Salmos para guiar a oração e a
devoção. Então, por que tantas pessoas não se dedicam à oração? Porque, como
nota Peterson, o poço é fundo e não temos nada para pegar a água. “Precisamos
de um vaso para colocar a água. (…) Os salmos são esse vaso. Não são a oração
em si, mas o vaso mais adequado (…) para a oração que já foi criado. Recusar-se
a usar esse vaso de Salmos, depois de compreender sua função, é errar de
propósito. Não é possível fazer um vaso de outro formato que o substitua”.
Certamente já houve várias tentativas para substituir os Salmos como nosso guia
da oração. Mas por que nos contentarmos com tão pouco, quando temos esse vaso
maravilhoso à nossa disposição? Deste modo, que usemos os Salmos como o livro
de orações da aliança. As palavras de Martinho Lutero são apropriadas como
conclusão: “O nosso amado Senhor, que nos ensinou a orar o Saltério e o Pai
Nosso e presenteou-nos com eles, conceda-nos, também, o Espírito da oração e da
graça, para que oremos sem cessar, com disposição e seriedade de fé. Nós
precisamos disso. Ele o ordenou e, portanto, o requer de nós. A ele sejam dados
louvor, honra e gratidão. Amém”.
____________
1William S. LaSor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento (São Paulo: Vida
Nova, 2009), p. 465.
2Para um resumo desse processo, cf. Eugene Peterson, em Um pastor segundo o coração de Deus (Rio de Janeiro:
Textus, 2001), p. 21-40.
3William S. LaSor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento, p. 484. Para uma introdução ao
estudo dos Salmos, cf. Carl J. Bosma, “Discernindo as vozes nos Salmos: uma
discussão de dois problemas na interpretação do Saltério”, Fides Reformata IX, Nº 2 (2004), p. 75-118 e N. H.
Ridderbos and P. C. Craigie, “Psalms”, em G. W. Bromiley (ed.), The International Standard Bible Encyclopedia, v. 3 (Grand
Rapids, MI: Eerdman, 1986), p. 1030-1038.
4William S. LaSor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento, p. 483.
5Cf. Carta a Marcelino
sobre a Interpretação dos Salmos.
6cf. Ambrose, Explanatio
Psalmorum XII.
7cf. Santo Agostinho, Comentário aos
Salmos, 3 v. (São Paulo: Paulus, 1997).
8cf. “Prefácio ao Livro dos Salmos 1545”, “Sumários sobre os Salmos
e razões da tradução”, “Trabalhos do Frei Martinho Lutero nos Salmos
apresentados aos estudantes de teologia de Wittenberg” e “Os sete Salmos de
Penitência”, Martinho Lutero –
Obras selecionadas, v. 8: interpretação bíblica, princípios (São Leopoldo: Sinodal & Porto Alegre: Concórdia, 2003), p. 33-37,
224-233, 331-492, 493-548.
9João Calvino, O livro dos Salmos, v. 1 (São José
dos Campos: Fiel, 2009), p. 26-27.
10Lewis Bayly, A prática da
piedade (São Paulo: PES, 2010), p. 225-226.
11Eugene Peterson, Uma longa
obediência na mesma direção (São Paulo: Cultura Cristã, 2005), p.
150.
12Ambrósio, De officiis
ministrorum I, 20, 88: PL 16, 50, em Constituição
Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina.
13Dietrich Bonhoeffer, Orando com os
Salmos (Curitiba: Encontrão, 1995), p.
14-15.
14Para toda essa seção, cf. Eugene Peterson, A vocação espiritual do pastor (São Paulo: Mundo
Cristão, 2006), p. 75-110.
15Para mais informações sobre o método de estudos bíblicos conhecido
como crítica da forma (Formgeschichte), e em como ela foi aplicada aos
estudos dos salmos, cf. William S. LaSor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush,
Introdução ao Antigo
Testamento, p. 467-478 e Derek Kidner, Salmos: introdução
e comentário, v. 1 (São Paulo: Vida Nova, 1992), p. 18-29.
16Raymond B. Dillard & Tremper Longman III, Introdução ao Antigo Testamento (São Paulo: Vida
Nova, 2005), p. 207, 217.
17Para esta seção e o gráfico empregado, cf. Eugene Peterson, A vocação espiritual do pastor, p. 96-109.
18Paul Althaus, A teologia de
Martinho Lutero (Canoas: Ulbra, 2008), p. 116.
19Dietrich Bonhoeffer, Orando com os
Salmos, p. 12.
20Timothy George, Teologia dos
reformadores (São Paulo: Vida Nova, 1993), p. 86.
21WA 31, p. 1, em Timothy George, Teologia dos
reformadores, p. 87.
22Vinoth Ramachandra, A falência dos
deuses: a idolatria moderna e a missão cristã(São Paulo: ABU, 2000), p. 60-61.
23Bill Arnold e Bryan E. Beyer, Descobrindo o
Antigo Testamento: uma perspectiva cristã (São Paulo: Cultura
Cristã, 2001), p. 312.
24Dietrich Bonhoeffer, Orando com os
Salmos, p. 23.
25“Salmos litúrgicos”, em Livro de Oração
Comum: forma abreviada e atualizada com Salmos litúrgicos (Porto Alegre: Igreja Episcopal do Brasil, 1999), p. 215-406.
26“Instructions
in Daily Meditation”, em Dietrich Bonhoeffer, Meditating on
the Word(Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 2000), p.
21-32.
27cf. Eberhard Bethge, Dietrich Bonhoeffer: a
biography (Minneapolis: Augsburg Fortress, 2000), p. 462-465.
28cf. Eugene Peterson, Maravilhosa Bíblia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 17-27, 97-133.
29Para um desenvolvimento da importância da comunidade cristã, cf.
especialmente Dietrich Bonhoeffer, Vida em comunhão (São Leopoldo: Sinodal, 1997).
30Dietrich Bonhoeffer, Orando com os
Salmos, p. 23-24.